[imagem: Schiele, 1910]

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Homofobia em preto e branco

Episódios de violência contra homossexuais trazem à tona a discussão sobre  direitos negados e preconceitos, que são encarados como corriqueiros pela sociedade.

Por Glauco Faria e Thalita Pires [16.09.2011 16h15]
(A matéria abaixo foi publicada na edição 94, de janeiro de 2011)

No último 14 de novembro, quatro menores de idade e um jovem de 19 anos agrediram fisicamente, utilizando até lâmpadas fluorescentes, três pessoas que caminhavam na avenida Paulista, em São Paulo. No mesmo dia, um estudante foi xingado e baleado por um militar do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, logo depois do fim da Parada Gay carioca. Ainda que as imagens da agressão paulistana tenham chocado, isso não evitou que, 20 dias depois, outros dois jovens fossem vítimas de nova agressão, na mesma avenida. E, no dia seguinte, que imagens de um circuito de segurança mostrassem outro caso na mesma região.
É provável que quando você estiver lendo esta matéria novos casos de violência homofóbica terão ocorrido. Casos notórios como os descritos acima trouxeram à tona a preocupação com a segurança e a proteção da vida de homossexuais no país, embora boa parte da sociedade ainda queira evitar a questão, banalizada e invisível durante a maior parte do tempo. Agressões que têm a orientação sexual como motivação são constantes no Brasil. Não existem dados oficiais a respeito, mas levantamento realizado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais contabiliza 198 homicídios com motivações homofóbicas em 2009. Em 2010, esse número já chegaria a 205. Segundo o antropólogo Luiz Mott (Universidade Federal da Bahia/UFBA), até 15 de dezembro, o número atingia a marca de 235 mortes, o que colocaria o Brasil na primeira posição entre os países que realizam algum tipo de levantamento.
A evolução da violência é preocupante, e a subnotificação dos casos indica que esse índice pode ser muito maior. Nem sempre as vítimas denunciam os crimes dos quais são vítimas, muitas vezes pelo fato de os algozes serem pessoas conhecidas. “A maioria das vítimas tem algum tipo de relação ou vínculo com o agressor, sendo um familiar, amigo, vizinho ou colega de trabalho. E esse agressor tem uma nítida impressão de impunidade, mesmo sabendo que está cometendo um crime”, conta Franco Reinaudo, da Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual da prefeitura de São Paulo. 
Reinaudo se refere ao Mapa da Homofobia, elaborado pela administração paulistana com base em um serviço de denúncias, que ajuda a traçar um mapa das agressões homofóbicas na cidade. Alguns dados merecem destaque e podem ter pontos em comum com outros municípios brasileiros. “Pode-se constatar a intolerância dentro do ambiente doméstico, já que 22% das agressões físicas acontecem dentro de casa. Quando a vítima nos procura por conta da homofobia familiar, é porque foram expulsos da residência em função de o pai ou a família descobrirem que são homossexuais”, relata. “Existem alguns casos emblemáticos, como o de um pai que martelou a mão do menino por conta da sua homossexualidade, e a comunidade ficou a favor disso. Outro caso foi de uma mãe que pediu para o companheiro dela estuprar a filha quando descobriu que era lésbica, para que ela `virasse mulher`.”
Conforme o mapa da homofobia paulistano, das mil denúncias de agressões, 50% aconteceram no centro expandido, que engloba a avenida Paulista. “A gente desconfiava que o centro ia aparecer por dois motivos: lá, é a área onde se tem o maior número de estabelecimentos da comunidade, e sabemos também que existe uma quantidade expressiva de homossexuais e travestis que moram nessa região”, explica Reinaudo. “Em geral, uma outra informação que chega no mapa é que essa violência, quando acontece em espaço público, é bastante covarde, porque os agressores estão em maior número ou pegam a pessoa de surpresa. É uma agressão gratuita, a pessoa não tem a chance de responder. Eles não atacam onde existe alta concentração, a agressão é feita no caminho em que as pessoas estão indo ou vindo da balada, são quase emboscadas  no entorno para pegar a pessoa desprevenida”.

As razões da violência e a internet
Mas por que teria havido esse recrudescimento da violência homofóbica? Para a cantora, compositora e ativista Vange Leonel, um dos motivos estaria ligado à visibilidade. “Homofobia sempre existiu, mas a partir do momento em que os movimentos gays passaram a sair para a rua, estamos nos expondo cada vez mais, e é natural, não correto, que haja uma reação maior”, afirma. “Éramos mais discretos, ficávamos em guetos específicos de gays e lésbicas, não estávamos na mídia, na TV etc. Esse é um aspecto deste recrudescimento. Uma reação a uma ação”.
Outro fator que pode ter contribuído para essa onda foi o nível moralista da campanha presidencial. “Nós já temos um caldo cultural homofóbico e tivemos, nesse período eleitoral, principalmente no segundo turno, os fundamentalistas saindo do armário, tanto os religiosos como muita gente que estava controlando sua discriminação, seus preconceitos, e colocaram pra fora. Passaram a aparecer manifestações contra os LGBTs, contra os nordestinos, e isso agora está passando para as vias de fato”, argumenta Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT).  “A maneira como foi colocado o debate foi muito triste, e se você buscar qualquer palavra se referindo à homossexualidade na internet, existem muitos sites incentivando o preconceito e até mesmo a violência”, destaca Reis.
A internet é, de fato, o terreno mais fértil para o florescimento da intolerância homofóbica. O caráter anônimo da rede, ainda que ilusório, dá a agressores a confiança de que não serão descobertos ao destilarem seus preconceitos.  As denúncias de homofobia à SaferNet, ONG que recebe denúncias de abuso no conteúdo da rede, correspondiam a 4% do total de reclamações no primeiro semestre de 2006. No primeiro semestre de 2010, a porcentagem passou para 10%, com um total de denúncias referentes à homofobia que chegou a 3.090 casos. Entre julho e novembro de 2010, esse número já foi ultrapassado e atingiu 3.217 notificações.
Comunidades homofóbicas, com nome como “Odeio Gays” e  “Matem os travecos”  fazem parte da história do Orkut. Hoje, é quase impossível acessar uma página de conteúdo tão agressivo, já que, assim que descobertas, elas são apagadas imediatamente. Mas grupos como  “Odeio cantadas de gays” e outros que associam times de futebol com homossexualidade são relativamente comuns. Sites de religiosos que atacam a homossexualidade também existem aos montes. Em um deles, de autoria de Julio Severo, é possível encontrar artigos relacionando homossexualidade e pedofilia e um link para uma página que promete ajudar quem quer “sair do homossexualismo”. 
Uma das ferramentas mais eficazes para divulgar a homofobia, atualmente, é pelo Twitter. As mensagens instantâneas têm menos moderação que as comunidades do Orkut ou páginas normais e, por isso, muitas vezes são mais agressivas. A polêmica envolvendo os termos #HomofobiaNao e #Homofobia Sim, no site, exemplifica bem o tipo de preconceito que pode ser propagado pela rede social. Logo após as agressões aos rapazes na avenida Paulista, em novembro, uma campanha contra a homofobia chegou ao Trending Topic (assuntos mais comentados) no Twitter. No dia 17 de novembro, um perfil apócrifo chamado @HomofobiaSim foi criado para defender as agressões. Sua descrição na rede afirmava que são os gays “os responsáveis pela propagação de DSTs no mundo”. Em 15 horas, o perfil ganhou mais de 15 mil seguidores e divulgou diversas mensagens preconceituosas, colocando o termo #HomofobiaSim como destaque no site. Após ser cogitada a possibilidade de processos judiciais, as mensagens foram apagadas e o perfil deixou de ser atualizado.
Outro caso é a ameaça que a transexual e ativista dos direitos da comunidade LGBT Luiza Stern sofreu no Twitter em 12 de dezembro. Sem nenhuma troca anterior de mensagens, o perfil anônimo @psycl0n tuitou uma mensagem em que ameaçava “descarregar uma arma” nela. Imediatamente, Luisa denunciou o perfil para a SaferNet, para o Ministério Público Federal e para a Polícia Federal. Ela deve ainda entrar com uma denúncia na Delegacia para Crimes na Internet do Rio Grande do Sul. “Apesar de não poder provar, acredito que o autor dessas ameaças seja uma pessoa que produz esse tipo de conteúdo há muito tempo no Orkut, agredindo integrantes da comunidade ‘Homofobia já era’”, diz Stern. “Até agora, tudo tinha sido agressão verbal, mas ameaça à vida é a primeira vez que recebo.” 
A desconfiança de Luiza baseia-se no fato de que, após as denúncias feitas por ela, o agressor postou diversas mensagens sobre o tema. Em uma delas, diz que Luisa o denuncia para o MP e a PF desde os tempos do Orkut, mas que nunca nada havia acontecido. “O anonimato encoraja esse tipo de atitude, mas isso é inaceitável. Quem sabe essa pessoa, que está escondida atrás do computador, não resolve colocar sua loucura em prática? Quero que ele vá para onde já deveria estar, que é a cadeia ou uma instituição mental, onde não possa ameaçar ninguém.”   
Em todos esses casos, entretanto, a reação ao preconceito ganhou força, e a própria internet foi um instrumento para articular manifestações contrárias à homofobia. “O meio é um canal para o uso do discurso da moral religiosa, mas o movimento LGBT tem usado a internet para combater o preconceito e se organizar”, afirma Roberto Gonçale, integrante da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Advogados do Brasil – Rio de Janeiro (OAB-RJ). “É um espaço tanto de confronto como de colaboração, e deve ser aproveitado da melhor forma possível”, acredita. Prova dessa força foi o “Beijaço contra a homofobia”, organizado virtualmente por conta de um casal homossexual ter sido discriminado por um funcionário de uma doceria Ofner. Em novembro,  o grupo já havia participado de um protesto de 500 pessoas contra o "Manifesto Presbiteriano sobre a Lei da Homofobia", assinado pelo chanceler Augustus Nicodemus Gomes Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

A lei e a mídia
“A gente tem percebido que a homofobia sempre existiu. Na Idade Média, éramos queimados na fogueira; depois, passamos a ser tratados como criminosos e, até o dia 17 de maio de 1990, éramos tratados como doentes”, afirma Toni Reis, referindo-se à data em que a Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o código 302.0, relativo à homossexualidade, da Classificação Internacional de Doenças, e reiterou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. Durante muito tempo, homossexuais foram perseguidos, nos mais diversos países, pela Igreja, pelo aparato judicial e pela própria ciência. Assim, mesmo salvaguardas necessárias, como a aprovação do Projeto de lei 122/06, que está em tramitação na Câmara do Deputados, sofrem todo tipo de resistência. 
O texto do projeto, de autoria da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), equipara crimes com motivações homofóbicas àqueles motivados, por exemplo, pelo racismo. “A aprovação da lei transferiria o preconceito para a esfera penal”, explica Roberto Gonçale. Para ele, a falta de uma lei específica faz com que grupos homofóbicos se sintam no direito de discriminar. “A lei penal é restritiva, então, ainda que haja um entendimento de que a agressão aconteceu por homofobia, a Justiça não pode punir”, afirma. A advogada Sylvia Maria Mendonça do Amaral também aponta para a insuficiência da legislação atual. “Se acontece uma agressão verbal, um ato homofóbico, a vítima vai à delegacia e não tem um crime tipificado, abre-se somente um boletim de injúria.”
Sylvia atenta também para outro problema: a dificuldade que as vítimas enfrentam para denunciar os crimes, já que podem ser vítimas de discriminação também nas delegacias, em função do despreparo da polícia para tratar com o tema. “Vejo as pessoas com muito medo de procurar a delegacia e serem discriminadas. Já acompanhei clientes meus para fazer boletins de ocorrência. Quando há um advogado presente, essa eventual discriminação não é demonstrada, mas muitas pessoas que conheço, que foram sozinhas à delegacia, sofreram”, conta. 
Da mesma forma, o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) compara a importância da aprovação do PLC 122 à criminalização do racismo. “Trata-se de uma disputa cultural. Claro que o Estatuto racial não resolveu a questão do preconceito, mas o inibe. E, daqui a alguns anos, as pessoas vão ter vergonha de dizer que faziam piadas com negros; o mesmo pode acontecer, daqui a alguns anos, em relação às piadas homofóbicas”, defende. Ele também observa o papel desempenhado pela mídia na perpetuação do preconceito. “A Globo, ao mesmo tempo que trata de questões importantes em novelas, reitera estereótipos em seus programas de humor. Imagine um jovem que queria conversar sobre sua homossexualidade com a família no sábado à noite enquanto é exibido um programa como um Zorra Total, que retrata estereótipos daquilo que é mais degradante.”
Apesar de reconhecer que os homossexuais conseguiram mais visibilidade na mídia em geral a partir dos anos 1990 – algo positivo, já que uma das bases do preconceito é justamente a desinformação e a falta de contato –, Vange Leonel também faz ressalvas ao tratamento midiático. “Tem que perder o medo de mostrar o beijo gay, cansam de mostrar em filmes, em enlatados. Não sei por que não se mostra em novela”, questiona. “E tem uma coisa perversa, que é usar esse suspense se vai ou não ter o beijo para ganhar a audiência”.

O papel das igrejas
Os setores conservadores, com efeito, não parecem dispostos a perder o “privilégio” de poder discriminar homossexuais. O PL 122/06 é atacado por muitas igrejas e não raro textos bíblicos usados em cultos e sermões de pastores e padres pregam contra a homossexualidade. Não à toa. Daniel Borrillo, em seu livro Homofobia – História e Crítica de um Preconceito, afirma que “os elementos precursores de uma hostilidade contra lésbicas e gays emanam da tradição judaico-cristã”. Ainda de acordo com o autor, “o cristianismo, ao acentuar a hostilidade da Lei judaica, começou por situar os atos homossexuais – e, em seguida, as pessoas que os cometem – não só fora da Salvação, mas também, e sobretudo, à margem da Natureza. O cristianismo triunfante transformará essa exclusão da natureza no elemento precursor e capital da ideologia homofóbica”, em um processo de desumanização e inferiorização dos homossexuais.
Assim, boa parte da resistência ao reconhecimento de direitos aos homossexuais vem dos religiosos. No caso específico da lei que criminaliza a homofobia, muitos deles vêem nela um equivalente à “lei da mordaça”. De fato, é possível que a aprovação do projeto obrigue os pregadores mais exaltados a segurar a língua na hora de “explicar” seus argumentos contra a homossexualidade. O texto do projeto prevê que será crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça [...] gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero” e que é proibida “a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica”.
É discutível, no entanto, se isso tem alguma coisa a ver com religião ou se atinge apenas os discursos que extrapolam o escopo religioso. “Não há problema em discordar da conduta homossexual e explicar isso aos fiéis”, afirma Roberto Gonçale. O problema seria o estímulo à intolerância. “As igrejas conservadoras usam o discurso para incitar a discordância e acabam servindo como justificativa para a violência. Nesse ponto, não é mais liberdade de expressão”, acredita. 
Essa também é a opinião dos pastores Fábio Inácio de Souza e Marcos Gladstone, fundadores da Igreja Cristã Contemporânea, denominação evangélica inclusiva, criada em 2006 no Rio de Janeiro. Homossexuais, os dois fundaram a Igreja por não se sentirem representados nas instituições tradicionais. “A igreja é a instituição que mais dá munição para que o preconceito exista. Na Parada Gay do Rio de Janeiro, havia vários cartazes de igrejas conservadoras, dizendo que gays vão para o inferno e que Deus abomina os gays”, conta Gladstone.
A Contemporânea divide seus argumentos a favor da tolerância em duas categorias. A primeira, é a diferença dos costumes de agora com os de milênios atrás. “A Bíblia de fato, em Levítico, proíbe a homossexualidade, mas o mesmo livro prega que não podemos comer mariscos, cortar o cabelo e que as mulheres não se aproximem de ninguém durante o período menstrual”, diz Souza. “Então, por que essa indignação seletiva contra a homossexualidade? Os costumes mudaram em muitos aspectos, não faz sentido continuar condenando sob esse argumento”, sustenta. A outra linha de argumentação dos pastores tem a ver com as traduções e interpretações que o livro sagrado do cristianismo ganhou ao longo dos anos. “Hoje, há bíblias que usam a palavra homossexual, e ainda discriminam em ativos e passivos. Mas essa palavra é moderna, não poderia estar nas escrituras. Nesse caso, a palavra original era “perversão” e não tinha nada a ver com orientação sexual”, explica Gladstone.
O papel das igrejas na opressão de homossexuais vai além do discurso moral que serve de argumento a agressores. A própria igreja agride fiéis homossexuais, em sua maior parte jovens do sexo masculino, quando tenta “convertê-los” ou “curá-los”. Antes de fundar a Contemporânea, o pastor Fábio de Souza pertencia à Igreja Universal do Reino de Deus, onde também era pastor. Ele passou por diversos “centros de recuperação”, que consistem em palestras de “convertidos”, que tentam convencer os homossexuais de que é possível mudar de orientação sexual. “Quando estava na Universal, fazia diversas ‘libertações’, mas nunca me ‘libertava’. Eu pedia a Jesus, fazia corrente, mas óbvio que nada mudou”, conta. “Só que isso é uma violência. Há casos, aqui na igreja, de pessoas que tentaram o suicídio por não conseguirem mudar. Há outros que chegam a um casamento heterossexual, mas que não conseguem sustentar a situação por muito tempo”, revela.
A cura de homossexuais não é pregada apenas nas igrejas. Há psicólogos que também afirmam fazer terapia para mudar a orientação sexual. O caso mais famoso é de Rosângela Alves Justino, psicóloga e também integrante da Igreja Batista. Em 2009, ela foi julgada pelo Conselho Federal de Psicologia por oferecer esse tipo de terapia. Ela chegou a receber uma punição branda – censura pública –, mas pôde continuar praticando a profissão. No ambiente das igrejas, há mais profissionais com a mesma conduta. “Os fieis são encaminhados para psicólogos se os centros de recuperação não funcionam”, diz Souza.
Apesar de seguir praticamente os mesmos preceitos morais das igrejas tradicionais – Gladstone faz questão de frisar que pregam contra a promiscuidade e o sexo pelo sexo –, a Contemporânea sofre ataques. “Durante os cultos, pessoas de outras igrejas nos rotulam e julgam”, afirma Gladstone. Não são os únicos. Em Fortaleza, outra igreja inclusiva, a Comunidade Cristã Nova Esperança, foi alvo, em dezembro, de ataques e pichações com os dizeres “Morte aos gays e sapatão (sic)” e “Homofobia não é crime”. Em novembro, a igreja teria também recebido uma ameaça de ser incendiada caso não mudasse do local.

O combate à homofobia
Embora provoquem choque casos como o da agressão aos jovens da Paulista, o fato é que a violência cotidiana contra homossexuais só poderá ser superada com uma mudança cultural, que não vai se dar da noite para o dia. Por conta disso, muitos entendem como fundamental trabalhar a questão dentro da sala de aula. “O mais importante de tudo seria tratar do tema nas escolas, tem que se trabalhar uma formação também pensando na igualdade em relação à orientação sexual. Se o adolescente é criado num ambiente homofóbico, na escola ele teria possibilidade de ter outra visão”, acredita Sylvia do Amaral. 
A preocupação com os mais jovens não se restringe apenas a preparar futuras gerações que respeitem a pluralidade sexual, mas se trata também de preparar um ambiente melhor para estudantes vítimas de preconceito e que não são aceitos por seus familiares. Caitlin Ryan, professora da Universidade de San Francisco, realizou uma pesquisa, divulgada em maio de 2010, em que entrevistou 224 jovens gays e parentes para avaliar o impacto da aceitação dos pais na vida destes jovens. O levantamento apontou que homossexuais rejeitados por suas famílias têm oito vezes mais chances de tentar o suicídio do que aqueles que foram aceitos;  têm seis vezes mais chances de desenvolverem depressão e três vezes mais possibilidade de praticarem sexo sem proteção. 
Outra pesquisa, divulgada em 2009 pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), mostrou que, nas escolas públicas brasileiras, 87% da comunidade (alunos, pais, professores e funcionários) têm algum grau de preconceito contra homossexuais. Isso e os possíveis prejuízos à saúde e ao bem-estar de milhões de pessoas que fazem parte do ambiente escolar justificaria a preocupação e a necessidade de se tratar o tema da homofobia na rede de ensino. No entanto, isso também é um tabu.  
Mesmo sem ser lançado oficialmente, um conjunto de material didático destinado a combater a homofobia na rede pública de ensino já sofre ataques raivosos e, claro, de cunho homofóbico. O kit, fruto de um convênio firmado entre o Ministério da Educação (MEC), o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a ONG Comunicação em Sexualidade (Ecos), trata do tema voltado para o universo de adolescentes homossexuais. O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), que pregou no plenário da Câmara que os pais deveriam “dar umas palmadas” nos seus filhos caso percebessem o “desvio” da homossexualidade, voltou à carga contra o material (mesmo sem conhecê-lo), dizendo que o kit “estimula o homossexualismo nas escolas de 1º grau”.
Na verdade, diferentemente do que afirma Bolsonaro, o material será distribuído no ensino médio, voltado para adolescentes, e não para o ensino fundamental. “Esse é outro exemplo de desinformação, é um kit com cinco vídeos que inclui manual para os professores, um material didático que foi discutido três anos com uma equipe multi-disciplinar e com especialistas em sexualidade”, explica Toni Reis. “Além disso, foi testado com profissionais da educação. As pessoas estão distorcendo, afirmando que nós queremos incentivar a homossexualidade, mas queremos incentivar a cidadania e o respeito à dignidade humana.”
Além da questão da homofobia sendo tratada nas escolas, o presidente da ALGBT indica outros passos importantes para a conquista da plena cidadania para os homossexuais. “Temos na ALGBT 237 grupos e nos nossos congressos deliberamos e queremos no Legislativo a aprovação do PLC 122, além da questão da união estável e do nome social das travestis e dos homossexuais. No Executivo, nossa meta é a execução do Plano Nacional LGBT, composto por 166 ações e que foi fruto da Conferência Nacional LGBT. No Judiciário, batalhamos pela aprovação das duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que têm para ser discutidas no Supremo Tribunal Federal: uma, sobre a união estável e outra, sobre o nome social das trans”, resume. Ainda há um longo caminho a percorrer para que os homossexuais tenham direitos iguais ao do resto da sociedade. Mas não discutir o tema é negar os próprios valores da democracia.
As raízes e a relação com outros preconceitos
De acordo com Daniel Borrillo, no livro Homofobia – História e crítica de um preconceito, o termo, utilizado pela primeira vez nos EUA em 1971, apareceu nos dicionários de língua francesa no fim da década de 1990 e, “da mesma forma que a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, a homofobia é uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos”.
Para Borrillo, a homofobia funciona como guardiã de um dispositivo de reprodução da ordem social, vigiando não só as fronteiras sexuais (hétero/homo) como também de gênero (masculino/feminino). Assim, o sexismo e a homofobia são tratados como duas faces do mesmo fenômeno social. “Eis porque os homossexuais deixaram de ser as únicas vítimas da violência homofóbica, que acaba visando, igualmente, todos aqueles que não aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais dotadas de forte personalidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade...”. 
Nesse sentido, é preciso questionar a homofobia não apenas na violência de seus atos e comportamentos, mas também quanto às suas construções ideológicas, incrustadas no modo de vida da sociedade. Borrillo diferencia a homofobia afetiva ou psicológica, de cunho individual e que se traduz em rejeição aos homossexuais, da homofobia cognitiva ou social, fundada na supremacia heterossexual, tendo como objetivo simplesmente perpetuar a diferença homo/hétero. “Neste último registro, ninguém rejeita os homossexuais; entretanto, ninguém fica chocado pelo fato de que eles não usufruam dos mesmos direitos reconhecidos por heterossexuais.” Ambas as formas de homofobia são autônomas. “Assim, é possível não experimentar qualquer sentimento de rejeição em relação a homossexuais (e até mesmo ter simpatia por eles/elas) e, no entanto, considerar que eles/elas não merecem ser tratados/as de maneira igualitária. O mesmo ocorre com a misoginia: quantos homens desejam e amam mulheres sem que essa atitude os impeça de tratá-las como objetos?”
Para Vange Leonel, “a homofobia tem duas raízes importantíssimas: uma, é a condenação religiosa e a outra, é o machismo. O fundo machista é porque o gay não tem virilidade, enquanto a lésbica rouba a virilidade do homem, mas as religiões condenando a homossexualidade é uma sacanagem, porque se está condenado como pecado um traço biológico”, aponta. “É como condenar alguém que tem olhos verdes, dizendo que isso é pecado. Não escolhi ser homossexual. Eles julgam como desvio da conduta moral, esse é um grande nó para se desatar.”
Mas uma questão que torna a discriminação e o preconceito dirigidos a homossexuais particularmente mais cruéis se relaciona ao fato de que são visados, sobretudo, indivíduos isolados, e não grupos já constituídos como minorias. “O homossexual sofre sozinho o ostracismo da sua homossexualidade, sem qualquer apoio das pessoas à sua volta e, muitas vezes, em um ambiente familiar também hostil. Ele é mais facilmente vítima de uma aversão a si mesmo e de uma violência interiorizada, suscetíveis de levá-lo ao suicídio”, afirma Borrillo em seu livro. 

Releia a edição 94 aqui. Foto Elza Fiúza/ABr.

FONTE: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário